quarta-feira, 9 de novembro de 2016

QUEM TIROU A FOTOGRAFIA QUE ME SALVOU?!


Tecnologia de última hora e humanidade

Em Lisboa e Tóquio os corações artificiais já estão por todo o lado. De facto, a tecnologia do século XXI é algo que se multiplica e dispersa a uma velocidade quase instantânea. Muitos corações de fraco rendimento e saúde são assim socorridos por esta tecnologia que salva – a implantação do coração artificial.

Mas estes corações artificiais feitos em fábricas como se fossem meros objetos para colocar em cima da mesa – uma espécie de rádios que permitam escutar Chopin – estes objetos técnicos que salvam – são tão importantes que ninguém quer, que ninguém aceita que sejam apenas máquinas.

E, por isso, numa fábrica meio romântica, meio revolucionária, situada nos arredores de Tóquio, naquela indústria médico-tecnológica e poética, os corações artificiais vão para dentro dos corpos doentes cumprir a sua função – mas não vão sozinhos. Sem prejudicar o essencial – os corações artificiais funcionam – essas máquinas minúsculas levam frases escritas nas suas paredes; e em muitas delas, diga-se, vão, mais precisamente, orações. Como se a fé a e crença continuassem a querer não abandonar o coração dos homens; mesmo os que são salvos pela ciência.

E sim, em certas cidades antigas com muita história – como Lisboa, por exemplo – a tecnologia não entra sem primeiro limpar os pés ao tapete, por assim dizer, pedindo delicadamente para entrar no espaço de uma casa-civilização com tanta e boa história. E é isso. Os corações artificiais batem com a eficácia necessária para prolongar a vida, mas, em muitos deles, palavras escritas nas paredes do coração artificial movem-se ligeiramente acompanhando as contrações orgânicas. E há de tudo – não apenas palavras religiosas. Há provérbios, declarações de amor, mandamentos, frases filosóficas, etc.. E até desenhos!

O que levas escrito no coração? Esta pergunta deixou de ser uma metáfora meramente romântica e passou a ser uma pergunta bem concreta. Como quem pergunta as horas ou como quem pergunta a idade que uma pessoa tem. Uma espécie de tatuagem interna, portanto.

Em pouco tempo, será dada a permissão a cada doente, que está prestes a receber um transplante de coração artificial, para escolher que texto, que frases quer levar lá para dentro (que frases tatuar, inscrever no coração).

É evidente que, depois, por meio dessas técnicas que veem com nitidez o interior do corpo e os movimentos dos seus mais pequenos órgãos, será possível ler claramente as frases escritas no coração artificial. Um raio-X ao coração tornará visíveis as frases que cada um decidiu colocar nas paredes desse órgão tão sensível.

Muitas pessoas farão declarações amorosas aos seus amados entregando, em papel apropriado, um raio-X do próprio coração. Tatuar declarações amorosas na pele passará a ser considerado ato superficial, literalmente.

Enfim, desde Lisboa a Tóquio, trabalha-se no mesmo sentido: a tecnologia e a saúde que salvam não deixarão o humanismo de fora. E muito do que é humano se pode transmitir com frases. Ou desenhos.

E a importância das imagens

Pensar nisto: como esquecemos, ou nem sequer chegamos a saber, o nome de quem nos tirou um raio-X à cabeça, nos fez um TAC, uma ressonância magnética? Sabemos o nome dos grandes fotógrafos, os grandes artistas produtores de imagens – Henri Cartier-Bresson, Robert Capa, Robert Doisneau, etc. – mas não sabemos o nome de quem captou imagens fundamentais do nosso corpo; imagens técnicas e científicas, é certo, mas muitas vezes imagens ligadas à saúde, imagens, no fundo, que verdadeiramente salvam. Pois realmente há fotografias – utilizemos esta palavra de forma simplista e alargada – que são feitas num hospital e que detetam doenças concretas na mais minúscula partícula do nosso corpo.

Quem tirou a fotografia que me salvou ou que salvou quem eu quero muito que continue vivo? Eis a pergunta a que muitas vezes não sabemos responder.

E talvez por causa dessa injustiça de tendermos a esquecer os fotógrafos do essencial – os médicos, ou os técnicos de imagens que os apoiam – se pudesse começar a pedir aos hospitais que, nos momentos decisivos, no momento em que se tira a TAC que irá detetar o possível avanço de uma doença, se chamasse um grande fotógrafo para o fazer.

Imaginar que, em Portugal, a arte se une à grande ciência da medicina desta forma.

Pensar, por exemplo, num grandíssimo fotógrafo português, como Jorge Molder, a quem se pede que carregue no botão que fará o raio-X decisivo.

É uma bela hipótese.

A imagem que salva – objetiva e organicamente – a nossa vida ser captada por um grande fotógrafo.



Gonçalo M. Tavares, in Revista UP, Outubro 2016

sexta-feira, 8 de julho de 2016

PRECISO DE TI




«Queres saber quem és para mim. Eis, então: tu és aquela que me impede de me bastar. Tu deste-me a coisa mais preciosa de todas: a falta!»

Christian Bobin é um escritor francês de 65 anos, marcado por uma forte espiritualidade e com obra traduzida em Portugal, embora muito reduzida. 

As palavras que hoje citamos constituem provavelmente a substância mais íntima do amor: não é por acaso que são ditas a Ghislaine, a mulher amada. 

A autenticidade do amor, o seu grande dom humano e espiritual é precisamente este: fazer-te compreender que precisas do outro, que não te bastas a ti próprio, que a autossuficiência e o orgulho são ilusões e que o egoísmo é pobreza. 

Sentir a falta é descobrir não um vazio mas uma abertura e uma potencialidade altíssima, a de acolher o outro dentro de si próprio e só assim sentir-se preenchido, feliz, realizado. 

Esta mesma consideração vale para todo o verdadeiro amor, incluído o místico, que é descoberta da falta de um Outro que seja para ti fonte de plenitude. 

Por isso é perigoso o momento em que não se sente falta de ninguém, no convencimento de bastar-se a si mesmo. Esta é a condição da morte do espírito. 

Para quem ama, pelo contrário, a existência torna-se como Bobin a descrevia no romance “Geai”: «A vida é um presente que abro a cada manhã, quando desperto. A vida é um tesouro de que descubro a parte mais bela a cada noite antes de fechar os olhos».
P. Gianfranco Ravasi

sexta-feira, 25 de março de 2016

Recriados no Teu sangue...




“Então Deus modelou o homem com a argila do solo,
insuflou em suas narinas um hálito de vida
e o homem tornou-se um ser vivente!” (Gn 2,7)

Há momentos em que somos surpreendidos pelo som de Deus!
Não! Não são os passos no Edén das origens…
É sim o som dessa estaca em forma de cruz que habita o monte Calvário…
Esse som que desenhou a radicalidade de Deus…
na Sua relação com cada um de nós!

Não poucas vezes desejamos ter o Teu coração, o Teu amor, o Teu olhar...
a Tua vida…a Tua sensibilidade…enfim, a Tua coragem…
Hoje, sugiro que habite o coração do homem um desejo diferente
ouso dizer que recusem subir à Tua cruz…
ouso dizer que recusem levantar olhos para Ti, como aquele centurião…
ouso dizer que recusem chorar como as mulheres de Jerusalém…

Hoje, atrevo-me a Te pedir que coloques no coração do homem
o desejo de que a argila de que foi formado …seja a argila daquele lugar onde assenta o som seco e frio da cruz em que Te sustentas a descansar como estandarte de vida levantado!
Hoje, Senhor, não quero olhar a Cruz…
quero sim olhar a argila da minha existência…
não quero levantar a cabeça…
quero prostrar-me, quero sentir esse frio que habita esta argila
tantas vezes sem o hálito da Vida…
Hoje, Senhor, não quero que a lança do soldado volte a perfurar o Teu peito…
mas que rasgue esta argila… que abra nela um sulco onde, hoje, possa assentar, a cruz que Te sustenta!
Hoje, Senhor, não quero matar a Tua sede com o vinagre da minha existência…
mas apenas que concedas o dom que este sulco humano de argila… seja cálice que acolhe esses fios fulminantes do Teu sangue…

Não quero ser argila partida pela secura do afastamento de Ti…
argila por onde tantas vezes escapou esse hálito vital!

Faz Senhor que o monte calvário habite por uns instantes o meu coração…
quero ser sulco, cálice de argila ressequido, que acolhe e recolhe Teu sangue…
Hoje, Senhor, humildemente Te peço…
que a argila da minha existência seja amassada no Teu sangue!
Quero sentir esse riacho de sangue que no Edén re-criado do calvário
levanta o homem do pó da terra!
Quero viver de Ti, em Ti!

Pe António Estêvão Fernandes

sábado, 5 de março de 2016

Quando se parte o leme...

"Na quarta vigilia da noite, 
Ele foi ter com eles,
Caminhando sobre o mar" 
Mt 14, 25

Dias há
Em que as horas não têm tempo, 
Em que o tempo não tem noite,
Em que a noite não tem escuridão.

Dias há
Em que se parte o leme,
Em que o mar rasga o barco,
Em que o barco procura o Mestre.

Mestre,
onde moras?
onde permaneces?
onde Te revelas?

Mestre,
descalça-me as sandálias...
Desce do Horeb...
Toca o mar...
Como a lua em Nisan...

Noites há,
Em que a luz é mais quente que o sol
Em que o sol dá as mãos à irmã Lua,
Em que a lua traça de cor os passos.

Hoje Senhor,
Diante de ti,
A história é ferida de eternidade,
A eternidade desenha o rosto na sombra,
A sombra desvanece-se

Porque...
Na quarta vigília da noite
Vens ter connosco.

Porque...
Quando se parte o leme
O importante
não é o porto,
não é o farol,
nem a bússola ou astrolábio,
nem mapa ou GPS.

Aí 
onde a luz parece ser mais escura que a noite
Eu oiço os Teus passos leves sobre o mar...
Eu oiço o marulhar da voz de Pedro:
"Senhor, vais lavar-me os pés?"

Do Verbo nasce a palavra:
"Não, Pedro!"
"Vou descalçar-te as sandálias!"
"Quero que tomes parte no Meu mar!"

Porque
quando se parte o leme,
O importante é a Vida!


Na quarta vigilia da noite, Ele,
Caminho, Verdade e Vida,
 foi ter com eles, caminhando sobre o mar! 
Mt 14, 25

À Funchal 7, nas 24h para Ele.
05.03.16
P. Estêvão