sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

"VEJO UM RAMO DE AMENDOEIRA" Jer 1,11



Há momentos na história de Deus connosco que, como dizia o filósofo grego Plutarco, somos ‘forçados’ por Ele a calar! Os últimos dias que vivemos, em comunidade, foram desses momentos. Neles a nossa fé é posta à prova e deve ser alimentada pela Palavra de Deus. Nela alimentei-me muitas vezes estes dias e nessa leitura e meditação encontrei uma imagem profunda e simbólica que nos pode ajudar a re-caminhar neste momento. Encontra-se no início do livro de Jeremias e também aparece no livro dos Números. Refiro-me à amendoeira! Vejo um ramo de amendoeira, diz Jeremias, cujo livro é escrito, numa época trágica de sangue, de guerra, de miséria no meio de uma cidade destroçada. Esta palavra é um grito de uma imensa esperança de Jeremias. A amendoeira é, na Palestina tal como aqui, uma das poucas árvores que cresce em pleno Inverno. Mais, é a única árvore a florir em pleno Inverno. É dela que surgem as primeiras flores. O ramo de amendoeira é o marcador do livro de Jeremias, que tem os olhos cravados na esperança e por isso, o resto passa à margem. Ele não se prende com os buracos, vai ao essencial, olha ao futuro.
Numa outra página muito bela, do Livro dos Números (Nm 17), Deus ordena a Moisés que recolha as varas de comando dos chefes das doze tribos de Israel, para, de entre eles, escolher um que exerça o sacerdócio em Israel. Em cada vara foi escrito o nome da respectiva tribo. Por ordem de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão. As doze varas foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do Encontro. Na manhã seguinte, todos puderam contemplar que da vara de Aarão tinham desabrochado folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros. Dos frutos é dito o nome: amêndoas! Vara de amendoeira em flor e fruto, que, por ordem de Deus, ficará para sempre na sua presença. Ninguém estranhará, agora, que o candelabro que, noite e dia, ardia na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira.
Queridos irmãos, este é um momento para nos revestirmos da vitalidade da amendoeira! Que neste “inverno” possamos florir. Que a força da primavera que se aproxima, inunde a nossa vida e que apoiados nesse ramo de amendoeira, iluminados pela luz que vem de Deus, sejamos voz que anuncia a esperança, a alegria da manha de Páscoa.

Pe António Estêvão Fernandes


Nota da redacção: Texto publicadono JUBILATE, Boletim Paroquial da Paróquia da Visitação, passados 8 dias da tempestade que truncou a vida a 12 pessoas daquela paroóquia.

EM LOUVOR DO FUNCHAL



Um dia, que esperamos não muito distante, a imagem desta baía em ruínas, soterrada hoje em lama e pranto, há-de dar lugar, de novo, à paisagem verdadeira. Passaremos deste inverno intransigente e funesto à clemência de uma estação que devolva ao Funchal a sua luz.


As buganvílias voltarão a estender placidamente sobre as ribeiras os seus braços brancos, rosa, cor-de-vinho; a árvore de fogo do Largo do Colégio levantará mais alto o seu deslumbre; os Jacarandás repetirão o assombro colorido; as Tipuanas desdobrarão, nos inícios de Junho, um incrível tapete amarelo frente a São Lourenço ou na subida de Santa Luzia.


Esperamos que, num tempo não distante, se possa reconhecer, de novo, a limpidez do traçado atlântico do centro, as ruas confusamente populares, o arabesco do mercado, o mesmo desenho de cheiros, a mesma mescla de sonoridades, o brando silêncio que nas praças tem o seu quê de familiaridade tímida, quase cerimoniosa.


Encravado na forma de uma concha há cinco séculos, burgo marítimo de referência, com construção fantasiosa, o Funchal foi a primeira cidade europeia nascida fora da Europa. O resultado é um património humano e urbanístico únicos. Evoca, é claro, o modelo de algumas cidades continentais, mas já é outra coisa, como acontece aos territórios de fronteira. É uma cidade reservada e extravagante, cosmopolita e primitiva, enérgica e indolente. Tanto como outras, mas diferente, de uma maneira que é só sua. Por exemplo, em certas horas vazias, as inúmeras varandas terrestres espalhadas pelas encostas parecem colocadas num imenso navio como os que muitas vezes ali aportam, e sente-se (isto é real) que toda a cidade flutua.


O Funchal é, ainda que isso seja escassamente recordado, uma cidade literária, como Trieste ou Marraqueche: ali não apenas nasceram Edmundo Bettencourt, Cabral do Nascimento, Herberto Helder ou Ana Teresa Pereira, nasceram os seus universos.


Conta-se que o poeta António Nobre gravou a canivete numa árvore do Funchal: “sede de luz como que de relâmpagos”. Um dia, que esperamos não muito distante, chegará a luz.

José Tolentino Mendonça© SNPC 25.02.10