terça-feira, 25 de março de 2014

"Ando esquecido, eu próprio, de me tornar jardineiro."

Grande Rui....

Companheiro de outros "jardins"

onde se abriam as mãos

e se apertavam as palavras

noite fora...







A distância do poder



Se há coisa que nos faz sentir distantes de alguém é o poder – nem a luta de classes nos fez perder o desconforto que sentimos quando nos aproximamos de alguém Grande. Fica-se sem jeito; as palavras encravadas no trânsito da timidez; o sorriso grogue de quem está numa terceira margem do pensamento. No final, lá diz o ditado: Mais vale parecer parvo estando calado, do que abrir a boca e confirmá-lo. Mas, se não abrirmos a boca, não estaremos a desperdiçar uma oportunidade de ouvir, a viva voz, o que pensa essa pessoa?



Sou aprendiz de jesuíta e dou aulas numa escola da Companhia de Jesus em Timor Leste. Tenho uma vida normal, em tudo semelhante à vida de muitos professores deste e desse lado do mundo. Embora viva numa terra de Heróis, não costumo tomar o pequeno-almoço com o senhor primeiro ministro Xanana Gusmão. Os heróis com quem convivo são meias-lecas de metro e quarenta, com doze anos de sonhos.



No entanto, há dias tive um encontro imediato. Pediram-me que fizesse chegar uma carta ao gabinete da residência. “E onde é isso?” Na minha cabeça, a tarefa era simples: entrar no carro, atravessar a chuva de Dili, trepar por um monte, esbarrar num muro, dar duas de conversa com um guarda e entregar a dita carta. Nada de camisas, nada de protocolos: serviço de despachante.



Em Dili chovia como previra. O monte, bastante maior e mais íngreme do que mo pintaram, deixou-me o carro aos gritos. E foi então que se deu o encontro. Guinei o volante à direita – a estrada já só terra vermelha – pedindo desculpas ao bólide e eis que, à minha frente, sem muro nem defesas, estava o senhor Presidente da República a regar as plantas do seu jardim.



 Abri o vidro – o carro ainda choroso –, soltei um “Senhor Presidente!” e repeti em jeito de memorando “a camisa, o protocolo”.



 “- Sim, sou eu! Faça o favor de dizer!”



Não fazia ideia do que dizer! Estava tudo dito, ali mesmo. O Presidente a regar as plantas do seu jardim. Um grande homem armado de regador. E eu, o professor, fiquei desarmado – nem a carta me protegeu. O jardineiro olhou-me com a nobreza de quem cuida do crescimento das coisas, e assim mesmo, desprovido de outras muralhas de poder, deixou-me rendido. A memória dos seus feitos de guerra, das suas longas barbas sansónicas de resistente, dos seus discursos enxutos, confirmou-se naquele jardim. Pedi-lhe desculpa, disse que não era minha intenção descobri-lo assim desavisado. A carta pesava agora uma tonelada de timidez e respeito não-dito. Despedi-me do guerreiro das flores e desci – o carro e eu indo calados.



Em Dili chovia já outra chuva. O poder que ali encontrei, tão próximo e vulnerável, trouxe-me uma lição nova. O poder que ali encontrei não foi o de um Presidente nem o de um Guerrilheiro, mas o do homem sábio que se deixou cultivar pelos perfumes da terra e por suas sujidades puras. E se me achei distante dele foi tão somente porque ando esquecido, eu próprio, de me tornar jardineiro. 


Rui Miguel Fernandes, sj
15.02.2014

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