segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Cântico dos Cânticos é o Santo dos Santos

Como é que este texto, onde se articula um diálogo amoroso entre um homem e uma mulher, 
se presta à articulação de um diálogo entre Deus e o ser humano? 

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 A palavra, mas também a atração que impele os interlocutores do Cântico dos Cânticos um para o outro, é igualmente determinante para a diferença que sela o seu diálogo. A sua união realiza-se a um nível poético, nas metáforas que eles inventam um para o outro e um sobre o outro. (..) Ele diz: «A uma égua entre os carros do Faraó eu te comparo, ó minha amiga» (Ct 1,9); «Minha pomba, nas fendas do rochedo, no escondido dos penhascos, deixa-me ver o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz. Pois a tua voz é doce e o teu rosto, encantador» (Ct 2,14). Ela responde: «O meu amado é semelhante a um gamo ou a um filhote de gazela. Ei-lo que espera, por detrás do nosso muro, olhando pelas janelas, espreitando pelas frinchas» (Ct 2,9). Aqui a linguagem constrói-se num face a face, vital no diálogo amoroso.

Na simetria deste diálogo, cada um se recebe da palavra do outro. Cada um é criador e pessoa, sem uma qualquer vantagem ou supremacia sobre aquele diante de quem está. Neste diálogo, não há lugar para dominação ou subordinação, nem qualquer estereótipo sobre um ou o outro sexo. Este diálogo amoroso emerge como um santuário de liberdade, onde os que se amam se expressam através de metáforas vivas e figuras inéditas. Amam-se numa atmosfera de liberdade e de igualdade, de um face ao outro, de um para o outro, num amor onde o carnal é espiritual e o espiritual é carnal, deixando à visibilidade das palavras a possibilidade de ser porta que nos aclara a invisibilidade de um amor que sustém e impele. 

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 Por isso, a pergunta: mesmo que o Cântico dos Cânticos nos remeta, apenas, para a realidade de um profundo amor humano, quem ama como se ama no Cântico dos Cânticos? Ninguém! Somos tentados a responder! Ninguém, senão o Deus da aliança; ninguém senão o amor que precede todos os amores. Percebemos, então, que o amor humano cantado nas palavras do Cântico dos Cânticos transporta no seu âmago a linguagem de uma aliança e do amor que redime e precede todos os amores. Nesta compreensão, a linguagem literal do amor humano adensa-se e plenifica-se, tornando-se síntese do humano e do divino. A mesma síntese que em Cristo une a humanidade e a divindade, revelando, simultaneamente, o Deus e o ser humano. Este entrelaçamento de amores (divino e humano) é um dado intrínseco e transversal a toda a Revelação Bíblica.

(...)

Por isso, pode dizer-se, sem receio, que sem a experiência que o leitor crente tem do amor de Deus é impossível a inteligência plena do poema do Cântico dos Cânticos. Porque só o amor entende o amor. Em Jâmnia, no final do séc. I, Rabbi Aqiba, uma grande figura do judaísmo farisaico, conhecia este amor. Por isso, no meio de uma acesa disputa judaica sobre a sacralidade do Livro do Cântico dos Cânticos, ele ergueu um testemunho que o tempo nunca apagará: «Que jamais alguém, em Israel, conteste e diga que o Cântico dos Cânticos mancha as mãos. Porque o mundo inteiro não é digno do dia em que o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Na verdade, todas as Escrituras são santas, mas o Cântico dos Cânticos é o Santo dos Santos».

 Luísa Alemendra 
 Biblista 
 Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa

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